Inês está na esplanada, com o sol
a bater-lhe, esse sol infernal. Não menos infernal do que aquilo que ela vê no
jornal. As notícias deviam mudar para “más (péssimas!) notícias!”. A Inês
acreditava nas pessoas, mas quem cresce neste mundo depressa percebe o quão
poderosa é a palavra acreditar. Acreditar só em nós próprios. E depois, se
tivermos sorte (MUITA sorte!), podemos dar-nos ao luxo de acreditar noutra
pessoa também. A capa do jornal era um acidente onde uma jovem mãe tinha
morrido na semana anterior. Inês lembrava-se do dia porque a estrada tinha
estado interrompida toda a manhã e tinha atrasado o seu regresso a casa depois
de uma noite de trabalho. Lembrava-se de ter resmungado, de ter gritado ao seu
Deus o porquê de nunca mais chegar à sua cama, na sua casa nova. “Que belo
quarto e que bela casa”. Por momentos a visualização do apartamento que a
esperava distraiu-a da fila de carros que estava à sua frente. Afinal, nunca
esperou viver numa casa assim tão nova… Começam as businas impacientes. O
senhor oficial da polícia informa que é um acidente bastante grave. “Boa!”,
pensou Inês tentando pensar rapidamente qual o desvio que a levaria a casa mais
cedo. Este pensamento multiplicou-se por todas as mentes daqueles condutores
enraivecidos. Deus sabe como o trânsito deixa fora de si qualquer um! O que
Deus não sabe, ou pelo menos espero que não saiba, é que pela cabeça de Inês
passaram mil e um caminhos, menos o daquela pobre coitada que, numa manhã igual
a tantas outras, entre deixar o filho na escola e ir para o seu ganha pão,
morreu. Acabou. Jamais voltará a casa.
Não podemos culpar Inês (ou não
queremos?), afinal ninguém pensou nisso. Só
pensaram no seu próprio azar em estarem atrasados. De facto, agora que
estava na esplanada a saborear o seu sumo, é que Inês se apercebeu o quanto a
nossa mente está esgoísta. É arrepiante. Pousou o jornal, virou-se para o
facebook. Uma foto de um cão abandonado porque os donos quiseram ir de férias. Pousou
o telemóvel. Chega de ver sofrimento! É então que se senta ao seu lado um casal
que está a comentar o facto de o tribunal europeu aceitar a lei na frança em
que não deixa as mulheres usarem a burka em locais públicos. Justificação: uma
questão de segurança, pois assim não podem ser correctamente identificadas. O
casal está satisfeito. Toda a gente sabe que a Inês não é a pessoa mais
tolerante no mundo no que toca às burkas. É uma feminista, como poderia ser? Mas
não o suficiente para não ver que esta questão de segurança, apesar de estar
mais que cem por cento correcta, não é de todo a razão para esta lei ser
aprovada. Valores mais profundos vêm ao de cima! Quem está contra sempre pode
dizer: banimos extremistas com leis extremistas! Não deixam de ter razão. Lá porque
ela não pode ir a países muçulmanos sem tapar a cabeça (não sei se por ser feia
ou por os poder deslumbrar com tanta beleza), não quer dizer que nos
comportemos como eles. Se os chamamos radicalistas, que chamaremos a nós
mesmos? Inês continuou a ouvir a conversa, e parece que há um testemunho de uma
mulher que usa a burka porque quer. Inês teve bastante tempo a tentar perceber
o outro, ou esta mulher, ou estas pessoas que não sendo muçulmanos as defendem.
Foi então que veio à sua cabeça um pensamento que a arrepiou. E não, Inês não
teve outra escolha senão perceber que a razão a tinha atingido com força.
Lembrou-se daquelas mulheres que morreram num incêndio, fechadas dentro de uma
fábrica, porque queriam os mesmos direitos, as mesmas condições de que os
trabalhadores masculinos. Aquelas mulheres que fizeram com que houvesse hoje em
dia o Dia da Mulher.
E foi então que ficou tudo tão claro. Nós não temos de ter
medo de dizer que não concordamos com comportamentos da sociedade só porque
meia dúzia, que se acha muito tolerante (paz e amor!) nos diz que temos de
aceitar as crenças dos outros. A Inês aceita as crenças, a Inês aceita e
respeita a religião, mas não podemos aceitar injustiças humanas. Quer seja um
jogador a morder outro, quer seja um cigano a receber dinheiro do estado só
porque rouba, quer seja o Carlos Cruz. Não interessa. Porque podem chamar à
Inês preconceituosa e o que quiserem, mas se existem pessoas que se orgulham de
ser tolerantes para com outros modos de viver, mesmo que para isso estejam a
ser tolerantes para com injustiças, a Inês não quer pertencer a este grupo.
Hoje em dia é cool tolerar tudo. Mas se
a Inês chegou a alguma conclusão nessa tarde, foi a de que ela não iria ser
tolerante contra as injustiças.